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Novos modelos comunitários desenvolvidos por alunos ajudam com maior previsibilidade de riscos de desastres

Parque Estadual do Rio Cocó, cujo escoamento tem efeitos de remanso pela maré, Fortaleza-CE. Foto: 2023 Mario Mendiondo

Estudantes da Escola de Engenharia de São Carlos da Universidade de São Paulo (EESC) da USP desenvolveram uma nova versão de modelos hidrológicos e hidrodinâmicos comunitários capazes de reunir as técnicas mais avançadas de simulações de inundações em rios e várzeas, mesmo em locais com pouca ou nenhuma informação coletada previamente. 

As novas ferramentas são fundamentais diante do momento que vivemos de mudanças climáticas e maior frequência de eventos extremos, como as enchentes históricas que atingiram o Rio Grande do Sul, em maio deste ano. Além de oferecer previsões mais detalhadas, as inovações facilitam a definição de políticas públicas para zoneamento em áreas de risco e sistemas de alerta antecipados com maior prevenção de riscos de desastres.

Apesar dos atuais modelos de previsão do tempo estarem cada vez mais populares e acessíveis, sozinhos eles não têm capacidade de informar eventuais impactos de enchentes ou inundações na superfície terrestre advindas desses modelos meteorológicos, como explica Mário Mendiondo, professor do Departamento de Hidráulica e Saneamento da EESC e coordenador do grupo de alunos responsáveis pelo desenvolvimento dos novos modelos.

“Isso acontece porque os modelos hidrológicos e hidrodinâmicos, que trabalham em escala de células ou pixels de superfície, precisam ser ‘alimentados’ constantemente com informações da superfície do solo para serem mais assertivos, a partir da meteorologia e estado de umidade do solo, em escala de minutos, horas ou até em um prazo que pode variar entre três e cinco dias. Essas informações são preciosas e fazem toda a diferença para saber até que altura o rio subirá e, assim, salvar vidas em perigo”, destaca.

Para ilustrar a relevância dos modelos desenvolvidos na universidade, Mendiondo lembra da tragédia das fortes chuvas ocorridas no estado gaúcho. “Ali, houve o envio de alertas prévios do CEMADEN (Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais) sobre as iminentes chuvas intensas e com riscos de inundações, deslizamentos e enxurradas. Contudo, esses alertas meteorológicos sem modelos hidrológicos/hidráulicos de superfície não estavam integrados à Defesa Civil local, que não tinha a certeza até onde chegariam as águas de inundação para retirar pessoas a tempo em bairros que foram literalmente arrasados no Vale do Taquari-Antas”.

“Em síntese, esses modelos hidrológicos/hidrodinâmicos não estão incorporados em nenhum sistema operacional de alertas nas mais de 40 mil áreas oficialmente mapeadas no Brasil sujeitas aos riscos de alagamentos, enxurradas e deslizamentos nos mais de mil municípios considerados prioritários e com mais de 60 milhões de pessoas morando em alta vulnerabilidade socioeconômica. Esses números ressaltam o forte apelo social para o uso de modelos hidrológicos e hidrodinâmicos mais avançados, de código aberto, comunitários, como os desenvolvidos pelos alunos da EESC”, diz o professor.


Participantes do WADILab (Water-Adaptive Design & Innovation) do Departamento de Hidráulica e Saneamento

Variáveis que se traduzem em previsões

Para sistemas de alerta de inundações, é preciso trabalhar conjuntamente modelos hidrológicos e modelos hidrodinâmicos. “Por um lado, um modelo hidrológico utiliza uma espécie de ‘contabilidade de água’, neste caso chamado de balanço hídrico, de entradas e de saídas das componentes do ciclo hidrológico, aplicado para qualquer porção espacial do terreno e para qualquer período de tempo”, explica Mendiondo. A precipitação, a evapotranspiração, a infiltração, o escoamento, bem como o armazenamento de água em diferentes compartimentos da bacia hidrográfica são exemplos desses componentes.

“Por outro lado, quando os processos são bem mais complexos, com várias forças atuando, como quando há movimento de escoamento de rios sobre baixa ou nenhuma declividade do terreno, especialmente em áreas de várzeas e alagados, e/ou com efeitos de represamento de águas, ou ainda com mudanças abruptas no escoamento por canalizações diversas, bifurcações ou até obstáculos da infraestrutura de cidades, é preciso incluir modelos hidrodinâmicos, que são matematicamente muito mais complexos e numericamente demandam maior tempo computacional”.


Urbanização próxima as várzeas ocupadas do leito do Rio Pinheiros, São Paulo. Foto: M. Mendiondo (2024).

Os novos modelos hidrológicos e hidrodinâmicos comunitários foram desenvolvidos pelo laboratório @TheWADILab (Water-Adaptive Design & Innovation) em colaboração entre professores e alunos da EESC-USP e da Universidade do Texas, em San Antonio (EUA), com robustez em seu banco de informações. Uma primeira versão do modelo hidrológico-hidrodinâmico com transporte de massas poluidoras foi publicada em revista especializada e pode ser acessada neste link. Neste ano, já existem novas aplicações: por exemplo, para o planejamento da drenagem futura de São Carlos-SP (ver link), outra para rompimento de barragens no Território Nacional (ver link) e até melhorias que aceleram o tempo de processamento interno e assertividade das estimativas desses modelos, incluindo a qualidade de água (ver link). Outras aplicações desses modelos estão sendo realizadas fora do Brasil, como em bacias com forte antropização da Índia (ver link) e dos Estados Unidos (ver link).

O professor da EESC destaca: “considerando os desafios de simular eventos hidrológicos extremos em biomas sul-americanos, essa nova geração de modelos permite maior flexibilidade e versatilidade de adaptação em vários tipos de regiões, climas, relevos e usos do solo. Inclusive, houve simulações preliminares em regiões que sofreram desastres por inundações na África e no Oriente Médio. Isso permite seu uso aplicado para sistemas de alerta antecipados de inundações, mapeamento de áreas de vulnerabilidade e até previsões acopladas a modelos de mudanças climáticas, seguindo recomendações da Organização Meteorológica Mundial, especialmente para a iniciativa ‘Alertas Antecipados para Todos’ (ver link) que busca soluções para grupos vulneráveis a riscos hidro-meteorológicos”.  


Mapa de sólidos suspensos totais simulados após tormenta na bacia do Tijuco Preto, São Carlos-SP. Fonte: Gomes et al (2023), https://doi.org/10.1016/ j.jhydrol.2023.129982

Contribuição da ciência comunitária

Além de receber o apoio da CAPES e da FAPESP, instituições de fomento à ciência no país, o desenvolvimento dos novos modelos hidrológicos e hidrodinâmicos foi possível também por meio da cooperação da Cátedra UNESCO de Águas Urbanas da USP, renovada em 2024 e aderida à nova plataforma de Open Hydrology da UNESCO (ver link), com Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia (INCTs) do CNPq: para Mudanças Climáticas Fase 2 (INCTMC2), coordenado pelo CEMADEN/MCTI, e do Observatório Nacional de Segurança Hídrica e Gestão Adaptativa (ONSEAdapta), coordenado pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), e de Combate à Fome (coordenado pela Faculdade de Saúde Pública, da USP).

Outro ponto de destaque foi a prática da ciência comunitária, com a contribuição de alunos da EESC naturais de diferentes países latino-americanos, tanto no desenvolvimento como na aplicação desses modelos. Além dos brasileiros, o projeto contou com pesquisadores da Colômbia, Costa Rica e de Honduras.

Na EESC, o desenvolvimento dos novos modelos hidrológicos e hidrodinâmicos conta com participações das brasileiras mestrandas Caline Leite, Maria Andrade Rocha Alencar e Marília Felten; do mestrando Mateo Hernandez Sanchez, natural de Colômbia; do doutorando Luís Miguel Castillo Rapalo, natural de Honduras; do doutorando Fabrício A Richmond Navarro, natural da Costa Rica,e dos brasileiros Marcus Nóbrega Gomes Jr, mestre e doutor pela EESC USP, atualmente pós-doutorando nos Estados Unidos, César Ambrogi do Lago, mestre e doutor pela EESC USP e pela Univ Texas San Antonio, atualmente trabalhando em Irlanda para empresa multinacional de engenharia e José Artur Teixeira Brasil, mestre pela EESC USP e fazendo doutorado nos Estados Unidos.

“A alta sinergia de projetos interdisciplinares, a colaboração internacional e a transformação dessa ciência mais humanitária, com maior inclusão e diversidade, foram fundamentais para chegarmos nesse ponto do projeto, com modelos feitos por uma ciência comunitária que pode salvar vidas”, celebra Mendiondo.

De fato, a previsão de inundações repentinas, progressivas ou até sob cenários de riscos de enxurradas sob mudanças climáticas faz diferença vital, não apenas para a retirada de moradores de áreas de risco em tempo, como também como ponto de orientação para gestores definirem em suas políticas públicas o zoneamento seguro para seus cidadãos.

Um destaque, acrescenta Mendiondo, é que esses modelos também ajudam a estimar melhor os impactos e extensão de outros riscos de desastres, como as secas severas (ver link) e até a melhor utilização de reservatórios de água doce (ver link). Esses temas hoje são tópicos principais de projetos FAPESP coordenados na EESC. "Ou seja, modelos hidrológicos-hidrodinâmicos comunitários permitem atender a uma diversidade de problemas da sociedade e, portanto, nos levam a praticar uma melhor comunicação interdisciplinar e uma resposta imediata para a população".  

Recentemente, o projeto foi aplicado como caso de estudo para auxiliar na prevenção de riscos de inundações na escala de país de Honduras (ver link) e a partir dali o próximo passo foi a escala da América Latina toda (ver link). “Tudo isso movido pela criatividade e motivação dos alunos da USP em dar uma atitude social às pesquisas científicas de alto nível internacional e assim ajudar na curricularização das futuras atividades de extensão”, afirma o professor da EESC e coordenador do projeto. 


Detalhe de aplicação dos modelos para a sub-bacia do Alto Rio Negro, em área transfronteiriza entre Brazil, Colômbia e Venezuela. Fonte: Gomes Jr et al (2023) https://doi.org/10.1016/j.envsoft.2023.105733

Próximos passos

O trabalho, que teve destaque em evento internacional ocorrido em abril de 2024, conta com um  vídeo educacional disponível no site do CEPED/USP.

Mas, o avanço segue. Com a chegada de novos computadores adquiridos em junho deste ano, fruto do apoio do INCT-Mudanças Climáticas fase 2 coordenado pelo CEMADEN, e com a continuidade de bolsas de especialização e pós-doutorado pela FAPESP, o objetivo nesse momento é dar ainda mais robustez ao sistema para ser testado até o final de 2024. A meta é que ele seja melhorado para se tornar operacional para a COP30, em 2025.

Antes disso, esses modelos até então desenvolvidos devem ser levados, testados em outras latitudes e continentes para serem regionalmente adaptados. No Estado de São Paulo, estes modelos estão sendo incorporados a novas propostas interdisciplinares com apoio da FAPESP. Neste aspecto, destaca-se a forte parceria entre EESC, IEE, IAG e outras unidades de dentro e fora da USP, visando um futuro Centro de Resiliência para Crise Climática, Desastres e Impactos em Setores Estratégicos.

“Temos uma rede extensa de parceiros em todos os continentes, especialmente reunidos em torno do Digital Water Globe (link), a maior parte deles jovens pesquisadores que buscam através dos trabalhos comunitários dar um sentido às suas vidas e às suas profissões. E é assim que seguiremos o desenvolvimento da nova geração de modelos hidrológicos e hidrodinâmicos: de forma comunitária, ou seja, com código aberto para que outras comunidades de pesquisadores e/ou usuários possam tanto usufruir como melhorar e refinar os modelos de acordo com suas necessidades locais.”

“É o que chamamos de solidariedade da ciência para salvar vidas", ressalta Mendiondo, como ele apresentou em junho deste ano, primeiro no colóquio científico da UNESCO em Paris, e depois durante a I Conferência de Mudanças Climáticas, realizada na sede do CNPq. Nesta última apresentação, é possível acessar este link, a partir do tempo de gravação de 6h e 48 min, e assistir o áudio e vídeo de Mendiondo.

 Para o professor, e conforme o apoio recebido a essas iniciativas nesses dois eventos, “esse ambiente comunitário promove uma ‘justiça climática pela ciência’, com quantidade e qualidade de conhecimento e sua inserção nos diálogos tão relevantes de transição climática”, conclui.


Situação em 2018 do passeio urbano próximo à Usina do Gasômetro, margem esquerda do ambiente fluvial do Guaíba, Porto Alegre-RS (foi inundado pelas cheias históricas de maio de 2024). Foto: M. Mendiondo, 2018.
Caracterização e monitoramento do escoamento superficial de rios de cabeceira com alunos de laboratório à jusante da Cachoeira dos Pretos, Joanópolis-SP, nascente do Sistema PCJ, manancial de Grande Metropole (munícipios em torno de São Paulo-SP e de Campinas-SP). Foto: M. Mendiondo, julho de 2019.
Visita de alunos e professores da EESC/USP e Mc Master Univ (Canadá) no futuro posto de observação fluvial, à jusante da Cachoeira do Salto, Analândia- SP. Foto: Mario Mendiondo, abril de 2024.
 

Mapa de velocidades instantâneas de escoamento superficial para América Latina. Fonte: Castillo-Rápalo, L. M. (2024), https://doi.org/10.5194/egusphereegu24- 13442
 
 

Visita de campo para caracterizar bacias de montanhas com enxurradas e deslizamentos, Bucaramanga, Colômbia. Foto: M. Mendiondo, outubro de 2018.

 

Denis Dana (Ex-Libris), para a Assessoria de Comunicação da EESC-USP