31/08/2020
Pode parecer obstinação os reitores defenderem a autonomia em geral - e a financeira em particular - das universidades estaduais paulistas, quando a gestão seria bem mais simples se fosse passada toda a folha de salários para o Estado, administrando apenas os valores de custeio e dos investimentos.
Na verdade, a prática de mais de três décadas demonstrou que, apenas com a autonomia, é possível a busca da excelência, por meio do planejamento de médio e longo prazos e da flexibilidade de adequações e correções das ações não eficazes.
A autonomia financeira das universidades estaduais paulistas, conquistada através do Decreto 29.598, de 2 de fevereiro de 1989, encontra, de tempos em tempos, dúvidas e até mesmo resistência em algumas instâncias governamentais, o que, ao meu ver, é resultado de informação incorreta ou insuficiente.
Existe a impressão de que, com a autonomia, as instituições podem gastar os recursos a seu bel-prazer. Ao contrário, os gestores têm a responsabilidade de administrar as universidades com os recursos disponíveis, o que inclui o pagamento dos salários do pessoal ativo e dos aposentados. Como em qualquer organização séria, as despesas devem ser compatíveis com a receita.
Não é uma tarefa simples. Os recursos repassados para as três universidades são uma fração do ICMS - 9,57% - da quota-parte do que Estado arrecada, sendo que a flutuação do imposto recolhido se reflete diretamente nesses repasses. Lembro que, nos últimos anos, quando a arrecadação do imposto foi reduzida significativamente devido à instabilidade na economia, os repasses mensais foram diminuindo em relação aos orçamentos previstos pelo Estado. Por este motivo, as três universidades enfrentaram
grandes dificuldades financeiras, superadas por medidas duras de contenção dos gastos.
No caso da USP, no período de 2015 a 2019, a redução dos repasses correspondeu a 4,63% do previsto.
A nossa instituição incentivou a demissão voluntária de 2.760 servidores técnicos e administrativos (mais de 15% do quadro) e cortou por volta de 30% das despesas de custeio e de investimentos. Em janeiro de 2020, após um esforço sistemático ao longo dos últimos oito anos, a USP conseguiu recuperar o equilíbrio financeiro.
Certamente fica claro ao leitor que a Universidade necessita ter reservas para sobreviver com a variação contínua e natural dos repasses recebidos do Estado. Supor que a reserva é um superávit financeiro é não compreender o funcionamento do sistema.
Com a autonomia, a administração central da Universidade, bem como as suas unidades de ensino e pesquisa, podem planejar, a médio e longo prazos, a utilização dos recursos de forma otimizada, tanto para manutenção da sua estrutura, quanto para a realização de investimentos de maior monta. De mesma forma, é a reserva financeira que possibilita manter as atividades básicas em períodos de crise, permitindo aos gestores replanejar os trabalhos, como foi feito nos últimos anos.
Somos, também, acusados de reservar grandes parcelas de nossas receitas para bancar os recursos humanos, numa ‘ação corporativa’. Nessa observação, há, pelo menos, três inverdades. A primeira é a suposta ‘generosidade’ nos reajustes. Analisando o passado recente, de 2015 a 2019, enquanto a inflação acumulada foi de 30,13% (IPCFIPE), os reajustes acumulados somaram 14,55%, menos da metade da inflação nesse quinquênio e aquém dos concedidos pelo próprio Governo do Estado, para os funcionários de diversos setores. Esses reajustes a menor foram decorrência da redução do ICMS no período e da responsabilidade das instituições de se adequar aos ditames da autonomia.
Outro ponto diz respeito à suposição de que os salários são muito elevados. A título de ilustração, vamos comentar os salários dos docentes. Um candidato com o título de doutor, nas universidades estaduais paulistas, pode concorrer a uma vaga de Professor Doutor (MS-3) em dedicação exclusiva, para receber o salário bruto de R$10.830,94. Pode parecer elevado para a média salarial brasileira, mas é importante
destacar que esse valor é pago a um profissional que continuou estudando por, pelo menos, mais 5 anos após a sua graduação, normalmente de oito a dez anos, com treinamentos de pós-doutorado no País e no exterior.
Esse salário é, geralmente, inferior ao de seus colegas que ingressaram, mediante concurso, em outras áreas do serviço público, sem a necessidade dessa carga de estudo adicional, e ao daqueles que atuam na iniciativa privada.
Por essa razão, vários jovens talentosos preferem seguir carreira em uma instituição do exterior ou em uma das universidades federais ou particulares brasileiras.
Curiosamente, as nossas coirmãs federais não têm autonomia total, sendo seus salários docentes definidos e pagos diretamente pelo Governo Federal. Mas, são valores muito mais generosos, inclusive para os professores titulares. Na USP existem alguns salários altos, menos de duas dezenas, resultado de decisões judiciais ou de carreiras externas da Universidade, como a de procurador do Estado.
Reforço que a carreira docente é internacional, uma das poucas em que os profissionais conseguem permissão de trabalho, mesmo nos países que têm mais restrições nesse campo. Felizmente, a USP, pela sua tradição e infraestrutura para o ensino e a pesquisa, está ainda conseguindo atrair jovens talentosos para seus quadros.
Mais um aspecto de crítica é que as universidades estaduais paulistas reservam uma parcela muito grande das receitas para os recursos humanos, cerca de 90% do seu orçamento nos últimos anos, mas que dificilmente se situa abaixo do patamar de 80%, insinuando que somos improdutivos.
Neste item, esquece-se que, nas universidades do exterior, que são utilizadas como termo de comparação, não se inclui o pagamento dos aposentados. No caso da USP, a massa salarial dos aposentados representa quase 30% do total. Sem a responsabilidade do pagamento dos servidores aposentados, o comprometimento das universidades paulistas com recursos humanos seria, em condições normais, em torno de 60%.
Vamos analisar outro ponto importante que parece não ser levado em conta nas críticas. Como o repasse do Estado às três universidades paulistas é uma parcela do ICMS, o efeito da redução da arrecadação, em virtude da pandemia, refletiu-se imediatamente nos recursos por elas recebidos, diferentemente do acontecido com as demais autarquias e órgãos estaduais.
No primeiro semestre deste ano, o valor repassado para a USP teve uma redução de R$ 494 milhões, 14,4% inferior ao orçado, obrigando-a a reprogramar todas as suas atividades. Mais ainda, como o comprometimento com os recursos humanos (ativos e aposentados) era em torno de 85% antes da pandemia, os gestores dispunham apenas da parcela restante para fazer os reajustes. Em função disso, necessitaram fazer uso das reservas financeiras, já bastante exauridas por quase uma década de arrocho, bem como de receitas próprias, que têm um valor reduzido. Quero tranquilizar a todos dizendo que,
na atual situação, se não ocorrerem novos contratempos, a USP conseguirá honrar seus compromissos.
Há inúmeras publicações apresentando dados sobre a evolução das três instituições após 1989, ressaltando que não foi apenas quantitativa, mas qualitativa. Nos últimos dez anos, a USP melhorou sua classificação na maioria das avaliações nacionais e internacionais.
Por fim, quero ressaltar que a excelência das universidades públicas paulistas, além de ser consequência de sua autonomia, inclusive financeira, é também resultante dos rígidos princípios de meritocracia adotados e de governança, que tem melhorado muito nos últimos anos. Acrescenta-se a isso o fato de o Estado de São Paulo contar com uma agência de fomento, a Fapesp, que assegura a possibilidade de realizar pesquisas de grande envergadura e sem riscos de descontinuidade.
Vahan Agopyan, reitor
25/08/2020