EESC, IGc e Embrapa comprovam que erosões “vizinhas” interagem entre si
21 de maio de 2021
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Pela primeira vez na ciência, pesquisadores concluíram que uma voçoroca é capaz de afetar outras ao seu redor, gerando efeitos em cadeia; atividade humana é uma das responsáveis pelo surgimento das crateras

Imagens de satélite e drones ajudaram os pesquisadores a compreender como o processo erosivo evoluiu com o passar do tempo. Foto: Valéria Rodrigues/Arquivo pessoal

Voçoroca. Você sabe o que é? A palavra, de origem Tupi, não é comum aos brasileiros, mas dá nome a um problema presente em todo o território nacional. Você já deve ter visto nas estradas do país paisagens com grandes erosões formadas nas áreas rurais. Essas crateras gigantes são chamadas de voçorocas. O que pode parecer natural aos olhos dos desavisados, na verdade, provoca danos sociais, econômicos e ambientais. Cientistas em todo o mundo têm estudado maneiras de estabilizar o processo de erosão e recuperar as áreas degradadas. Agora, um novo trabalho realizado por pesquisadores da USP em São Carlos e da Embrapa deve ajudar a prevenir o avanço das crateras e colocar em prática projetos mais eficientes de resgate do solo. Pela primeira vez na literatura científica mundial um complexo de voçorocas foi analisado, e os cientistas confirmaram que algumas erosões interagem entre si, provocando impactos em cadeia. 

Um grupo de trabalho do Departamento de Geotecnia (SGS) da Escola de Engenharia de São Carlos (EESC) e do Instituto de Geociências da USP viajou mais de 400 km até a bacia hidrográfica do córrego do Palmital, entre as cidades de Lavras e São João del-Rei, em Minas Gerais (pertencente à bacia do Alto Rio Grande). Nessa bacia, que tem mais de 58 milhões de m³, 65 voçorocas foram mapeadas. Algumas delas com centenas de m², com formas, tamanhos e profundidades diferentes, além de vários declives e ramificações. 

A professora da EESC e uma das coordenadoras do estudo, Valéria Guimarães Silvestre Rodrigues, que esteve no local, conta que a região é difícil de ser estudada. “Nós fomos a campo, medimos e coletamos amostras do solo. É uma região geologicamente muito complexa, formada por diferentes tipos de materiais geológicos. Alguns locais são de difícil acesso. Conectadas por cursos d'água, uma voçoroca acaba influenciando na dinâmica de outras", relata.  Ou seja, trabalhar na recuperação de apenas uma voçoroca não estabiliza, na maioria das vezes, o processo erosivo, já que ela pode estar conectada com outras voçorocas. De acordo com a docente, pesquisas já mostraram que crateras recuperadas de forma isolada acabam tendo o processo erosivo retomado. 

Algumas voçorocas da região de Nazareno possuem centenas de m², com formas, tamanhos e profundidades diferentes. Foto: Google

Entendendo o passado para projetar o futuro - Com a ajuda de imagens de satélites, drones e sistemas computacionais (fractal, multifractal e lacunaridade), os pesquisadores da USP realizaram um estudo histórico e conseguiram observar como o processo erosivo evoluiu com o passar do tempo e compreender a conexão entre as voçorocas localizadas em uma mesma bacia hidrográfica. As transformações ocorridas nos terrenos ao longo dos anos, como as mudanças em sua declividade, além do caminho percorrido pelo fluxo d’água por entre as voçorocas, permitiram aos especialistas atestar que algumas crateras interferiam em outras, gerando novos deslizamentos e impedindo que as afetadas se recuperassem. Esse estudo refere-se à tese de doutorado de Ligia Sampaio Corte Real, ex-aluna da EESC e que foi orientada pela professora Valéria, tendo como coorientador o pesquisador Silvio Crestana, da Embrapa Instrumentação de São Carlos.  

De acordo com os cientistas do projeto, a avaliação desses impactos é crucial para entender a vulnerabilidade ambiental e orientar novas medidas para lidar com o problema. “A reunião de todos os dados dessas voçorocas é uma experiência única no Brasil. Temos o conhecimento mundial mais avançado para abordar a recuperação dessas áreas. É algo fantástico e eu me sinto orgulhoso, pois não são comuns estudos completos assim”, comemora Silvio, que foi um dos coordenadores da análise.  

A partir da interpretação dessa gama enorme de dados, os cientistas também concluíram que grande parte da responsabilidade pelo surgimento de tantas erosões, que não alcançam todo esse tamanho do dia para a noite, é do próprio ser humano. Composta originalmente de Mata Atlântica e Cerrado, a região estudada começou a ser desmatada a partir do século 18, com o início do Ciclo do Ouro, no qual o produto era exportado pela Colônia Portuguesa. Durante décadas, a mineração dominou a dinâmica da economia brasileira. Além da própria exploração do solo e da construção de estradas não pavimentadas e sem sistemas de drenagem adequados, a demanda por alimentos da população que começou a se formar ao redor das minas e as próprias mudanças climáticas que trouxeram chuvas e secas mais intensas provocaram grandes modificações no terreno. “Algumas práticas agrícolas, como a monocultura e a pastagem – que já foi utilizada em quase 50% da bacia hidrográfica, aumentaram a erosão e reduziram a fertilidade do solo ao longo dos anos. As queimadas também impediram a restituição de matéria orgânica. Além disso, algumas das estradas continuam a ser utilizadas, aumentando o escoamento para os solos mais suscetíveis”, explica Valéria. 

O estudo também concluiu que grande parte da responsabilidade pelo surgimento de tantas erosões é do próprio ser humano. Foto: Valéria Rodrigues/Arquivo pessoal

Atualmente, com o declínio do Ciclo do Ouro, a maior parte do entorno das voçorocas é habitada por pequenos agricultores, que vivem da produção tradicional de leite. São famílias que veem suas propriedades tendo áreas reduzidas pela erosão do solo. “Não são fazendeiros com grandes recursos”, explica Rogério Ferreira, um dos orientadores da pesquisa e pesquisador da Embrapa Territorial, de Campinas. Nascido na região estudada pelos cientistas em Minas Gerais, o especialista afirma que os moradores locais acabaram se acostumando com as erosões na paisagem, sem considerar, muitas vezes, o risco que elas oferecem. 

“Eu mesmo só me dei conta da quantidade de voçorocas que havia por ali, em Nazareno, São João del-Rei e Tiradentes, quando fui estudar Agronomia e uma colega comentou com um membro do nosso grupo sobre o quanto o local era degradado”, lembra. Cleusa Cunha, que nasceu na região e hoje em dia trabalha com reflorestamento em voçorocas, confirma que a quantidade de crateras tem aumentado, principalmente, em épocas de chuva. “Muitos agricultores colocam gado em regiões de declínio onde corre a água e, assim, o processo erosivo aumenta. Alguns ficam preocupados com esses buracos, que estão chegando muito perto de suas propriedades e até das estradas asfaltadas”, relata. 

Silvio Crestana explica que o desenvolvimento de voçorocas causa problemas em cadeia: “As crateras levam embora porções de terras de propriedades rurais e, às vezes, cobrem metade das terras de um agricultor. Além disso, deixam o solo desnutrido e ainda podem atingir bacias hidrográficas. Por causa dos grandes buracos, muitos agricultores acabam precisando vender suas terras desvalorizadas, o que também provoca um impacto social”. O pesquisador Rogério Ferreira ressalta que, atualmente, os produtores rurais estão mais informados sobre os perigos, mas precisam de ajuda para enfrentar a situação. “As grandes mineradoras da região têm usado técnicas de bioengenharia para recuperar algumas erosões. Essas ações são exigidas pela legislação. Já os agricultores, precisam de recursos para melhorar suas atividades de pecuária e agricultura para terem mais capital”, ressalta. 

As crateras levam embora porções de terras de propriedades rurais, deixam o solo desnutrido e ainda podem atingir bacias hidrográficas. Foto: Valéria Rodrigues/Arquivo pessoal

Os cientistas da USP defendem que medidas de prevenção, mitigação e recuperação precisam ser colocadas em prática para conservar o local para as gerações futuras. Eles alertam que, em casos como a erosão em grande escala, o problema de perda do solo é irreversível, mas o manejo adequado pode estabilizar esse impacto. “Mudanças no uso da terra podem ajudar a estabilizar a erosão, assim como medidas de drenagem adequada, tanto superficiais como subsuperficiais. Para recuperar voçorocas é preciso fazer o caminho inverso e recompor os nutrientes do solo. O primeiro passo é plantar gramíneas, que são mais resistentes, e leguminosas, que ajudam a formar a primeira camada de nutrientes do solo, melhorando suas propriedades químicas, físicas e biológicas. Em seguida, é preciso plantar árvores que sejam adaptadas àquele ambiente. É um processo caro, complexo e de muitos anos, e é importante ressaltar que um determinada voçoroca precisa ser abordada como parte de um sistema complexo”, relata Rogério. 

Silvio Crestana lembra que um método validado em São Carlos pode ajudar na recuperação dessas áreas: o Sistema Integração Lavoura-Pecuária-Floresta, estratégia aplicada em mais de 15 milhões de hectares no Brasil e que envolve a aplicação dos três sistemas dentro de uma mesma área, de forma que contemple e beneficie todas as atividades. “Com essa combinação de práticas sustentáveis, é possível melhorar os nutrientes e a fertilidade do solo e ainda evitar que a agricultura provoque erosões. No que diz respeito ao solo, há maior quantidade de matéria orgânica, maior ciclo de nutrientes, melhores condições para o desenvolvimento de microrganismos, maior infiltração de água e menor perda de umidade. Ao possibilitarmos uma maior produção em um mesmo espaço, se reduz a pressão pela abertura de novas áreas e pelo desmatamento. Esse conhecimento precisa chegar aos gestores públicos e privados.”, defende Silvio.  

O trabalho, que contou com financiamento do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), foi publicado em revistas científicas conceituadas internacionalmente, como a Environmental Monitoring and Assessment e a CATENA. Além de Valéria, Silvio e Rogério e Ligia, a pesquisa contou com a participação dos alunos de mestrado e doutorado Raul Cassaro, Maria Paula de Oliveira, Osni José Pejon, Vinicius Martins Ferreira e Joel Barbujiani Sígolo. Representando os moradores da região, Cleusa Cunha agradeceu pelo trabalho desenvolvido. “É muito importante ter essas pessoas trabalhando com isso, porque eles podem ajudar a proteger o ambiente e acabar com as erosões”, finaliza. 

Mais informações: eesc.jornalista@usp.br

Por Eduardo Sotto Mayor, da Fontes Comunicação Científica, para a EESC/USP


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